‘Ainda estou aqui’: um Oscar, a discussão sobre anistia e os perigos das ditaduras
Longa que narra a luta de Eunice Paiva em busca da justiça é um filme sobre o passado brasileiro e, também, sobre o presente não apenas no Brasil
Por Fernanda Simas
“Ainda estou aqui”. O longa brasileiro que ganhou o Oscar de Melhor Filme Internacional. O filme que trouxe de volta a discussão sobre as consequências da Lei da Anistia, sancionada em 1979, emocionou a todos os que sabem, por experiência ou conhecimento, dos horrores daquela ditadura militar e levou o tema a tantas outras pessoas que precisam ter isso em mente. Um filme que traz discussões sobre os impactos de termos lideranças questionando e negando a existência de regimes ditatoriais.
O longa de Walter Salles conta a história do desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva em 1971, durante a ditadura militar, no Rio de Janeiro. Mas narra principalmente a resistência e luta de sua mulher, Eunice Paiva, para cuidar de seus cinco filhos e levar até o fim uma batalha para saber o que realmente tinha acontecido com seu marido e fazer justiça.
Obter o atestado de óbito de seu marido só foi possível em 1996. Ainda assim, apenas com a repercussão do filme, em janeiro deste ano, o Registro Civil alterou a o documento, trocando o termo “desaparecido” por “morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto de perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964”.
Um mês antes, a Justiça havia determinado que os atestados de óbito dos mortos contabilizados oficialmente durante o regime ditatorial fossem corrigidos para constar que as vítimas morreram pelas mãos do Estado.
Passado e presente
Por suas consequências diretas, o filme não apenas é um resgate da memória de um passado ditatorial - que ainda hoje é aclamado por muitos em nosso País -, mas a ponte para o retorno de discussões importantes. O Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou a investigação das circunstâncias da morte de Rubens Paiva e reabriu o debate sobre a Lei da Anistia, sancionada em 1979, que impediu a punição do regime militar pelas mais de 400 mortes e desaparecimentos - oficialmente foram 202 mortos e 232 desaparecidos.
A anistia abriu caminho para o retorno da democracia, mas concedeu perdão aos crimes cometidos durante os anos de chumbo, perdoando, portanto, os mandantes e executores de tortura e morte ao longo de mais de 20 anos. “Ainda estou aqui” trouxe a possibilidade de se discutir se o crime continuado, como é o caso de desaparecimento, se enquadra na lei da Anistia.
Em dezembro, o ministro Flávio Dino interpretou pela primeira vez que a anistia não pode incluir a ocultação de cadáver.
“O Brasil anistiou todo mundo em 79. Isso cria uma marca profunda porque as pessoas nunca absorvem isso, como ocorreu com a família Paiva. ‘Alguém da minha família morreu e ninguém nunca foi punido’”, explica o professor de relações internacionais e coordenador da Fesp-SP. “Essa discussão (sobre a lei da anistia) é sempre válida. Atos considerados execráveis praticados em nome do Estado devem ser punidos.”
“Ainda estou aqui” foi feito com base no livro de mesmo nome escrito por Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice e Rubens. Mas é importante destacar que partes dessa história puderam ser contadas em razão do trabalho da Comissão da Verdade, que possibilitou descobertas concretas sobre o que tinha acontecido com Rubens Paiva após ser levado de sua casa em 71. Em 2012, a Comissão concluiu que o Estado havia sido responsável pela morte do ex-deputado.
A Comissão da Verdade foi estabelecida pela presidente Dilma Rousseff e funcionou entre 2011 e 2014, mesmo quando muitos políticos e, obviamente, forças militares, queriam deixar esse assunto no passado.
Perigos atuais
Mas esse filme é, também, sobre o momento atual. No Brasil acabamos de passar por uma nova tentativa de golpe militar, com direito à plano para assassinar os presidente e vice eleitos democraticamente e o ministro do STF.
Olhando para a nossa vizinha Argentina, que levou seus militares aos bancos dos réus, vemos hoje o presidente Javier Milei relativizando a ditadura militar (1976 - 1983), dizendo que foi um fato histórico contado apenas por um lado, sem levar em conta a narrativa dos militares, e refutando o número de vítimas, de 30 mil mortos e desaparecidos.
O professor Marques lembra de um filme argentino que também jogou luz ao tema da anistia. “A história oficial”, de 1985, venceu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro um ano depois. Ele conta a história de uma professora que descobre que a menina que adotou pode ser filha de presos políticos da ditadura.
“O filme toca um pouco no assunto da Lei da obediência devida. (Raúl) Alfonsín assumiu o governo em 1983 e logo criou uma comissão de direitos humanos para investigar o que havia acontecido. Os militares diziam que deviam ser anistiados por conta da obediência devida, porque estavam obedecendo ordens”, explica Marques sobre o filme presente nos primeiros passos da redemocratização argentina e determinante para a construção de uma memória coletiva e tomada de consciência.
No Chile, por outro lado, Marques ressalta que é extremamente difícil alguém de direita que defenda o regime de (Augusto) Pinochet. “Eles defendem, por exemplo, o liberalismo econômico do Chicago Boys no governo do Pinochet, mas não o regime. Porque ficou claro que eram atos de extrema loucura”.
Após o regime Pinochet (1973 - 1990), o Chile passou a adotar a disciplina “direitos humanos” como obrigatória nas escolas. “Houve uma tentativa de reaprender com a história, isso trouxe uma cultura de não anistiar, não compactuar e, então, minimizou o efeito sobre as novas gerações de ter gente achando que aquela prática não leva a nada”, conta Marques.
Lembrar para não esquecer
“É preciso lembrar para não esquecer, para não repetir”. Essa é uma frase repetida milhares de vezes por quem fala de regimes ditatoriais. Faço aqui um parêntesis pessoal (não é praxe aqui na Carta, mas vale neste momento).
Cresci com meu avô me contanto histórias sobre aquela época, histórias que fizeram parte da vida profissional dele. Como advogado e um dos fundadores da Comissão de Justiça e Paz, ele defendeu diversos presos políticos, atuando em casos importantes, como o de Alexandre Vannuchi Leme, de Mariguella e dos frades dominicanos.
Foi com ele que ouvi pela primeira vez sobre o caso de Rubens Paiva e foi com ele que escutei repetidamente, até seus últimos dias de vida, que a democracia foi uma conquista e precisa ser defendida. Líderes que defendem abertamente regimes autoritários e violentos têm surgido e ganhado poder nos últimos anos. Por isso, “Ainda estou aqui” se torna ainda mais necessário hoje.
”No cenário internacional, começamos a ver líderes como (Donald) Trump, que assediam outros governantes, que falam em anexar outros países, que veem a força como único elemento de uso nas relações internacionais”, avalia Marques, ressaltando que o impacto desse fenômeno também é interno.
“Vários (países) vivem momentos de violência politica, em termos de segurança publica. E, com a criminalidade aumentando, pessoas que prometem violência são muito bem vistas pela maioria da população”, diz o professor. Um exemplo claro é El Salvador, onde Nayib Bukele tem uma alta popularidade e começou a ser citado como exemplo para outros governantes latino-americanos.
Para Marques, esses governantes não têm vida longa. “A violência não permite que se governe por muito tempo, tanto é assim que você vê o Milei começando a abandonar um pouco essa retórica em nome de temas econômicos.”
De toda forma, o discurso autoritário tem ganhado espaço e adeptos. Ver um filme brasileiro ganhando o Oscar de melhor internacional ao mostrar os efeitos trágicos da ditadura militar e, principalmente, levar a mudanças concretas, pelo menos no âmbito da Justiça, é algo histórico e de grande importância histórica e política.
Indicação sobre o tema
O filme “Ainda estou aqui” traz também o drama do Alzheimer como pano de fundo. E essa foi uma das motivações de Marcelo Rubens Paiva ao escrever o livro que deu origem ao longa. Desta vez, deixarei aqui um artigo, escrito por Marcelo e publicado na Folha de S. Paulo, sobre Eunice e a frase ‘ainda estou aqui’.
Mais pelo mundo
Trump rompe com Zelenski e situação da Ucrânia fica mais incerta
O ato público de rompimento entre Donald Trump e Volodomyr Zelenski, na sexta-feira, deixa a Ucrânia numa situação incerta três anos após a invasão russa. Como último ato, nesta segunda-feira, o americano afirmou que vai cortar a ajuda militar.
Os dois presidentes se encontraram na Casa Branca para discutir o acordo sobre minerais, hidrocarbonetos e infraestrutura ucraniana num momento em que o americano vinha discutindo com o russo Vladimir Putin um plano de paz.
As conversas para encerrar a guerra foram criticadas justamente por não envolver Zelenski e representantes da Europa.
A visita da sexta começou tensa. "Você veio muito elegante hoje", comentou o Trump sobre Zelenski, vestido como de costume com um traje com toques militares, em vez de terno e gravata.
Antes que a reunião ficasse fora de controle, o ucraniano garantiu que Trump estava "do lado" da Ucrânia, e o republicano se felicitou por ter alcançado um acordo "muito justo" sobre o acesso aos recursos ucranianos. Mas, Zelenski também afirmou que não se deve fazer concessões a Putin, a quem chamou de "assassino".
A discussão começou quando o vice-presidente americano, J.D. Vance, disse a Zelenski que ele estava sendo "desrespeitoso" com os americanos. Então, Trump interveio e disse que o presidente ucraniano "não tem as cartas" nas mãos.
“Você está brincando com a vida de milhões de pessoas. Está brincando com a Terceira Guerra Mundial".
"Pergunte ao povo o que pensa sobre o cessar-fogo?", disse Zelenski, interrompendo Trump para tentar fazer um ponto. "Você já esteve na Ucrânia para ver os problemas que temos?", perguntou a Vance, sem levantar a voz.
Depois da discussão, toda gravada e em presença da imprensa americana, Zelenski deixou a Casa Branca sozinho e Trump afirmou que ele pode voltar “quando estiver disposto à paz”.
No mesmo dia, o presidente da França, Emmanuel Macron, disse que a Rússia é o "agressor" na guerra da Ucrânia. "Existe um agressor que é a Rússia. Existe um povo agredido que é a Ucrânia", disse Macron aos jornalistas durante visita a Portugal. "Acho que estávamos certos ao ajudar a Ucrânia e sancionar a Rússia há três anos, e continuar fazendo isso", acrescentou.
Ao longo do fim de semana, outros líderes europeus se juntaram no reforço ao apoio dado a Zelenski. Durante uma cúpula em Londres, se comprometeram a fazer mais pela segurança da Europa.
França e Reino Unido chegaram a falar de uma trégua de um mês na guerra, mas, nesta segunda-feira, Zelenski pediu garantias de segurança. “Será um fracasso para todo o mundo se a Ucrânia se vê obrigada a um cessar-fogo sem sérias garantias de segurança", disse o presidente.
"Espero que saiba que estaremos todos com vocês e com o povo da Ucrânia pelo tempo que for necessário", garantiu o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, a Zelenski. A situação de Starmer é a mais delicada porque o Reino Unido é grande aliado dos EUA. Ao mesmo tempo, o premiê britânico chegou a cogitar o envio de tropas à Ucrânia.
Com negociações do cessar-fogo paradas, Netanyahu ameaça o Hamas
O primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, ameaçou o Hamas nesta segunda-feira, falando em consequências que o grupo não pode "imaginar" se não libertar os reféns que ainda estão em Gaza. A fase um do acordo de cessar-fogo terminou, mas as negociações para a fase dois estão paradas.
"É hora de dar aos moradores de Gaza uma oportunidade real. É hora de lhes dar liberdade para ir embora", acrescentou Netanyahu perante o Parlamento. "O presidente Trump apresentou um plano visionário e inovador para a liberdade de migração de Gaza e acredito que é uma visão que poderia ser apoiada", disse o primeiro-ministro.
O Hamas acusa Israel de buscar o "colapso" do frágil acordo de trégua que entrou em vigor em 19 de janeiro, após 15 meses de guerra, iniciada pelos ataques terroristas do grupo em território israelense no dia 7 de outubro de 2023.
Com os recentes impasses, Israel anunciou a suspensão da entrada de mercadorias e suprimentos no enclave palestino.
O Hamas expressou seu desejo de seguir com as duas últimas etapas do acordo, ou seja, "um cessar-fogo global e permanente" e a "retirada completa" israelense de Gaza, antes da "reconstrução e do levantamento do cerco" ao território. Vários países árabes, incluindo Catar, Egito e Arábia Saudita, denunciaram uma "violação flagrante" do acordo e acusaram Israel de "usar a fome como arma contra o povo palestino".
Durante a primeira fase do cessar-fogo, o Hamas entregou a Israel 33 reféns, oito deles mortos, em troca da libertação de cerca de 1.800 presos palestinos.
Nesta segunda, Israel sofreu o primeiro ataque mortal desde o início da trégua. Um druso israelense matou uma pessoa e feriu quatro na cidade de Haifa. A polícia descreveu o ataque como "terrorista", um termo que indica que está ligado ao conflito israelense-palestino.