‘Estamos rezando para não passar fome’, a rotina de um palestino em Gaza
Shadi Balbisi, pai de cinco crianças, conta para a ‘Carta Global’ conta como procura por comida e água com a piora da situação humanitária no enclave
Por Fernanda Simas
Nas últimas duas semanas, organizações internacionais expressaram a preocupação com o uso da fome como ferramenta de guerra em Gaza. Durante as 11 semanas de bloqueio total, ou seja, sem que nenhum caminhão de ajuda humanitária pudesse entrar no enclave, a rotina dos palestinos, principalmente aqueles com filhos, foi sair em busca de alimento.
“Estamos rezando para não passar fome, não há comida, nem água”, contou para a Carta Global Shadi Balbisi, de 38 anos, pai de cinco filhos. “A situação aqui é muito ruim”.

O engenheiro vive com os filhos e a mulher, Diana, em uma casa alugada no norte da Faixa de Gaza. A casa própria e seu local de trabalho, conta, foram destruídos ao longo da guerra que começou em outubro de 2023, após os ataques terroristas do Hamas contra Israel.
Enquanto os ataques israelenses continuam, Balbisi sai pela manhã em busca de ajuda. “Saio com pressa em busca de alguma ação que esteja sendo feita por instituições de ajuda para crianças em situação de desnutrição aguda. Mas as instituições não estão funcionando porque não está entrando ajuda o suficiente”, explica.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou, na sexta-feira, que os moradores do território palestino "estão sofrendo provavelmente a fase mais cruel" do conflito, e acrescentou que Israel "deve aceitar, permitir e facilitar" as entregas humanitárias. Antes de 7 de outubro de 2023, cerca de 500 caminhões de ajuda entravam diariamente em Gaza.
No dia 18 março, após Israel romper o cessar-fogo que vigorava desde janeiro, o bloqueio total foi instaurado. O primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, afirma que se trata de uma tática para forçar o Hamas a entregar os reféns israelenses que seguem em seu poder - dos 251 sequestrados pelos terroristas, 57 continuam em Gaza, sendo que 34 estão mortos.
Retorno da ajuda
Nos últimos dias, após fortes críticas internacionais e o aumento da pressão diplomática, principalmente por parte de França e Reino Unido, Israel liberou a entrada de ajuda no enclave, mas até os alimentos e remédios chegarem aos palestinos levará tempo.
O Programa Mundial de Alimentos (PMA) sinalizou que 15 caminhões foram "saqueados na quinta-feira no sul de Gaza, quando se dirigiam às padarias" apoiadas por este organismo da ONU. "A fome, o desespero e a angústia de não saber se chegará mais ajuda alimentar estão fazendo aumentar a crescente insegurança", declarou o PMA.
“As crianças estão sempre com fome, não tem leite para as mais novas”, diz Balbisi. A menina Sila nasceu durante a guerra, tem apenas um ano e é a que mais sofre com a falta de leite. Mira, de 2 anos, Musk, de 10 anos, Rita, 12, e Jamal, 14, brincam entre os escombros da casa para tentar “fazer o tempo passar”.
Em um vídeo enviado por Balbisi, Rita distrai as irmãs mais novas com brincadeiras. Em outro, pega uma tigela de metal para poder ir buscar comida.
A cada 3 dias, toda semana, Balbisi vai aos postos de distribuição de alimentos. O drama é tanto que ele decidiu iniciar uma campanha online para arrecadar fundos. Até este domingo, ele havia conseguido 290 euros.
Para o engenheiro, a esperança de ter seu lar de volta é muito pequena. “Gaza será novamente um lar decente para os palestinos só depois de um longo período de tempo.”
Ocupação
O Exército israelense intensificou sua ofensiva neste mês com a promessa de derrotar os líderes do Hamas e ocupar Gaza. Segundo Netanyahu, as forças do país "tomarão o controle de todo o território da Faixa".
Desde outubro de 2023, a represália militar de Israel matou pelo menos 53.592 pessoas, a maioria civis, segundo o Ministério da Saúde de Gaza, número que a ONU considera confiável. Outras pesquisas mostradas por veículos internacionais de diferentes países apontam que este número pode ser ainda maior.
Denúncias
No sábado, uma reportagem da agência de notícias Associated Press, com base em relatos de ex-prisioneiros palestinos e dois soldados, revelou que tropas israelenses estão forçando sistematicamente palestinos a atuarem como escudos humanos em Gaza, enviando-os para dentro de edifícios e túneis para verificar a presença de explosivos ou militantes. Essa prática teria se tornado comum durante os 19 meses de guerra, segundo os relatos.
O Exército de Israel afirmou estar investigando diversos casos que alegam envolvimento de palestinos em missões, mas não forneceu detalhes. Também não respondeu a perguntas sobre a extensão da prática ou se houve ordens de oficiais superiores.
Em resposta a essas alegações, o exército israelense afirmou para a AP que proíbe estritamente o uso de civis como escudos — uma prática que há muito tempo acusa o Hamas de empregar em Gaza - e afirmou que também proíbe forçar civis a participarem de operações de qualquer outra forma, e que “todas essas ordens são rotineiramente enfatizadas às tropas”.
Indicação sobre o tema
Com a piora da situação humanitária em Gaza e a divulgação do plano de Netanyahu de ocupar o enclave, os protestos contra o governo de Israel dentro do país aumentaram. Deixo como indicação um episódio do podcast do The Guardian Today in Focus que traz uma conversa com dois israelenses que se opõem à guerra.
Mais pelo mundo
Homem mata dois funcionários da embaixada de Israel nos EUA
Na semana passada, um homem matou a tiros dois funcionários da embaixada de Israel em frente a um museu judaico em Washington antes de gritar “Palestina livre”. O crime desencadeou discussões sobre o antissemitismo.
Elias Rodriguez, de 31 anos, oriundo de Chicago, compareceu ao tribunal na quinta-feira, após receber duas acusações de assassinato em primeiro grau e assassinato de funcionários estrangeiros. Se for declarado culpado, pode ser condenado à pena de morte.
As autoridades investigam o caso "como um ato de terrorismo e como um crime de ódio". O crime ocorreu a 1,6 km da Casa Branca, quando era realizado um ato para jovens profissionais e pessoal diplomático no museu.
Israel identificou as vítimas como Yaron Lischinsky, um cidadão israelense, e Sarah Lynn Milgrim, uma funcionária americana da embaixada, e disse que ambos planejavam se casar.
O ministro das Relações Exteriores de Israel, Gideon Saar, culpou pelo incidente as críticas europeias a seu país pela intensificação da ofensiva israelense em Gaza. O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores francês, Christophe Lemoine, classificou as palavras de Saar de "escandalosas" e "injustificadas".
Rodriguez foi visto caminhando do lado de fora do museu antes do ataque. Ele se aproximou de suas vítimas, que estavam de costas para ele, e atirou 21 vezes, conforme os documentos judiciais.
Guerra entre governo Trump e Harvard ganha novos capítulos
A guerra entre o governo Trump e a Universidade de Harvard ganhou novos desdobramentos nesta semana. Na quinta-feira, a administração retirou da instituição o direito de matricular estudantes estrangeiros.
Atualmente, 6,8 mil estrangeiros estudam na universidade, o que representa 27,2%, ou seja, mais de um quarto de todos os estudantes, sendo que a maioria está matriculada em cursos da pós-graduação, por meio do Programa de Estudantes e Visitantes de Intercâmbio (Sevis).
A administração Trump acusa a universidade de “fomentar a violência e o antissemitismo” e chegou a afirmar que Harvard se “alinhou ao Partido Comunista da China em seu campus”.
A determinação do governo foi derrubada na sexta-feira após a universidade entrar com um processo contra a Casa Branca, argumentando que a medida feria a Primeira Emenda da Constituição e estava prejudicando não só a instituição, mas milhares de alunos matriculados.
O governo Trump empreende uma luta total contra as universidades do país desde que voltou à Casa Branca. As acusações de conivência com o antissemitismo no campus se repetem desde as manifestações contra as ações de Israel em Gaza. Outro alvo de ataque do governo Trump são os programas de diversidade, destinados a abordar a marginalização das minorias.
Diferentemente de outras universidades, que acataram a política do governo republicano, Harvard o processou há um mês, por tentativa de impor mudanças em seu currículo e em suas políticas de admissão e práticas de contratação.
O Departamento de Segurança Interna dos EUA inicialmente enviou uma carta para Harvard exigindo que a universidade disponibilizasse informações sobre as atividades dos estudantes estrangeiros nos campi, incluindo a participação em protestos. Segundo a publicação The Harvard Crimson, a universidade apresentou parcialmente os registros disciplinares dos estudantes estrangeiros.
Na semana passada, o governo republicano anunciou um novo corte de US$ 450 milhões em subsídios federais, que se soma ao congelamento de outros US$ 2,2 bilhões. No começo de maio, ele excluiu a universidade de qualquer nova ajuda federal.
Harvard é a instituição de ensino superior mais rica dos EUA e decidiu destinar US$ 250 milhões ao financiamento de "pesquisas críticas", depois que a Casa Branca anunciou novos cortes no orçamento federal destinado a este centro de ensino.