Pepe Mujica: a despedida final do símbolo da esquerda latino-americana
Ex-presidente do Uruguai morreu aos 89 anos, mas deixa um legado de ideias políticas e respeito à democracia
Por Fernanda Simas
Tupac Amaru foi líder e mártir de uma revolta inca no fim do século 18. Foi ele quem inspirou o nome do movimento guerrilheiro Tupamaro, que defendia uma revolução marxista-leninista no Uruguai e cujo rosto símbolo foi José Alberto Mujica Cordano. Enquanto o mundo assistia à sua última despedida, ficava o questionamento de como manter o legado de “Pepe”.
Mujica foi militante, guerrilheiro, político, carismático, mas, principalmente, leal aos seus ideais, defensor de uma América Latina unida, independente da cor partidária de cada país. “Sua maior faceta é de comunicador. Ele entendeu setores sociais que sempre foram diminuídos, que passaram a ver em Mujica alguém que lhes representava”, resume um amigo jornalista uruguaio.
Pepe nasceu em 20 de maio de 1935 e morreu aos 89 anos, uma semana antes de chegar aos 90. O ex-presidente estava em cuidados paliativos após o câncer - que descobriu em 2024 - ter se espalhado. Em janeiro, Mujica falou sobre seu estado de saúde e pediu para morrer em paz. “Não me peçam mais entrevistas, nem nada, meu ciclo acabou, sinceramente estou morrendo e o guerreiro tem direito ao seu descanso”.
Num mundo onde os políticos estão cada vez mais desacreditados e a polarização domina o debate público, Pepe era conhecido e respeitado por diferentes lideranças políticas. E ressaltou a importância disso muitas vezes depois da redemocratização uruguaia, em 1985.
“Eu sou um homem de esquerda, mas fui amigo de (Sebastián) Piñera, sou amigo do cara da Colômbia. Porque antes de qualquer coisa, sou latino-americano. E essa história de brigar um com o outro não nos serve…um país não tem que ser nem de direita e nem de esquerda, tem que ser latino-americano primeiro”, disse Mujica em entrevista a Pedro Bial em 2017.
Ateu, Pepe dizia não acreditar em algo depois da morte, mas sempre respeitou as visões religiosas. Sua última despedida, nesta quinta-feira (15) ocorreu do jeito que ele sempre viveu: simples. Ele foi velado no palácio legislativo, cremado e teve suas cinzas enterradas no pé de uma grande árvore de sua chácara, onde está sua cachorrinha de três patas, Manuela.
Mujica foi se despedindo ao longo da vida. Se despediu a cada mudança de fase, se despediu do povo uruguaio conforme as doenças que o debilitaram foram ganhando espaço e se despediu de seus seguidores, pedindo que, depois de sua morte, seguissem com a luta.
Despedida da guerrilha
A militância de Mujica nasce dentro do Partido Nacional, o que hoje seria um partido mais de centro-direita. Depois, ele se transformaria num líder guerrilheiro. Em 1960, Mujica viajou a Havana, onde escutou os discursos do argentino Che Guevara pedindo que os jovens aprendessem com o contato direto com o povo, com suas necessidades e anseios.
Já com 30 anos, se juntou ao Movimento de Libertação Nacional Tupamaros, na época um partido de esquerda armada. Ao contrário do modelo cubano, os Tupamaros se concentraram nas cidades e não nas selvas.
Foi preso algumas vezes, mas a última - em 1972 - significou sua despedida da luta armada e, como ele dizia, foi necessária para desenvolver a visão de mundo que levou até o fim. Durante 12 anos, Mujica ficou preso, a maior parte deles em uma solitária, sem livros, sem remédios, sem cama ou local para defecar e urinar. Quase sem água, chegou a beber a própria urina.
Perdeu todos os dentes, passou a escutar vozes e as formigas.
“Naquele calabouço descobri que as formigas gritam. Basta aproximar o ouvido delas para comprovar”
Mas Mujica sabia que sairia dali com a redemocratização.
E, quando saiu, se reconstruiu na democracia, começou a jogar sob outras regras. Nos primeiros anos, o Tupamaros participou dentro da Frente Ampla, sem colocar dirigentes em listas para concorrer como deputados, por exemplo, mas apoiando integrantes de uma esquerda mais tradicional.
A partir de 1995, dirigentes tupamaros passaram a concorrer. Mujica chega ao Parlamento, como deputado e senador, e logo se torna uma figura que arrasa em termos populares.
A presidência
Em 1° de março de 2010, o ex-guerrilheiro e anticapitalista - sempre lembrava ao falar de crimes do passado que o maior crime era abrir um banco - foi empossado presidente do Uruguai. Ao longo de seus cinco anos à frente do país, Mujica protagonizou avanços importantes na agenda progressista.
Promulgou a lei do aborto, legalizou a maconha - colocando o Estado no comando de tudo, da produção à comercialização - e o casamento entre pessoas do mesmo sexo. “O casamento gay é mais velho do que o mundo. Tivemos Júlio César, Alexandre, o Grande. Dizem que é moderno, mas é mais antigo que todos nós. É uma realidade objetiva. Existe. Não legalizá-lo seria torturar as pessoas inutilmente”, dizia o presidente.
Seu governo também recebeu prisioneiros de Guantánamo, a pedido dos Estados Unidos, e refugiados sírios.
Na questão social, seu governo conseguiu baixar o desemprego e aumentar o salário real. Somando os seus cinco anos de mandato com os cinco anteriores de Tabaré Vásquez - e os cinco posteriores também de Vásquez - o Uruguai viu a pobreza passar de cerca de 32% da população para 8,1%.
Conhecido como o presidente mais pobre do mundo, Mujica doava 90% do seu salário para projetos sociais e, ao invés de se mudar para a residência oficial presidencial, ficou na sua chácara com a mulher Lucía Topolansky, a cachorrinha Manuela e seu fusca azul de 1987.
Despedida da carreira política
Entre 2015 e 2020, Pepe Mujica foi senador. Com a chegada da pandemia, precisou se afastar da carreira política. Na ocasião, foi enfático em dizer que sua renúncia era um afastamento da linha de frente, mas não um abandono da política.
Em razão de uma doença imunológica crônica, Pepe não podia tomar a vacina contra a covid-19 e, por isso, decidiu renunciar.
“Vou porque a pandemia está me obrigando. Ser senador é falar com as pessoas e andar por todo lugar. Estou ameaçado por todos os lados: pela velhice e por minha doença crônica”
Foi naquele momento que o uruguaio falou algumas de suas palavras mais lembradas. “No meu jardim, há décadas não cultivo o ódio. Aprendi uma dura lição que a vida me impôs. O ódio acaba deixando as pessoas estúpidas. Passei por tudo nessa vida, fiquei seis meses atado por um arame, com as mãos nas costas, fiquei dois anos sem ser levado para tomar banho e tive que me banhar com um copo. Já passei por tudo, mas não tenho ódio de ninguém e quero dizer aos jovens que triunfar na vida não é ganhar, mas sim se levantar toda vez que cair.”
Mujica fez campanha política pela esquerda até o fim de sua vida. Já bastante debilitado, fez questão de estar presente na campanha de Yamandú Orsi, eleito presidente do Uruguai no ano passado.
Despedida da vida pública
Em janeiro deste ano, Mujica, já diagnosticado com metástase de seu câncer, pediu para morrer em paz. “Não me peçam mais entrevistas, nem nada, meu ciclo acabou, sinceramente estou morrendo e o guerreiro tem direito ao seu descanso”.
Sua vida foi dedicada ao amor, à militância e ao trabalho. Sempre de forma simples, sem luxo, sem extravagâncias, Pepe se tornou um líder da esquerda latino-americana, do progressismo. Mas sempre com postura crítica a governos autoritários. Se afastou de Evo Morales, de Cristina Kirchner e da Venezuela de Nicolás Maduro.
Em sua despedida final, milhões de uruguaios e admiradores de Mujica acompanharam o cortejo de seu caixão, agradecendo a importância e as lições deixadas por ele.
Indicação sobre o tema
Um bom filme para entender o impacto dos anos em que viveu preso na construção do caráter e pensamentos de Mujica é o “Uma noite em 12 anos”, disponível na Netflix. Além disso, deixo aqui a dica da música "A Don José", um clássico da música folclórica uruguaia associado à esquerda, que tocou durante a passagem da carreta fúnebre de Pepe nas ruas de Montevidéu.
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