Síria pós-Assad: da euforia às negociações
Líder interino busca apoio internacional enquanto países vizinhos se movem diante das incertezas
Por Fernanda Simas
Uma semana após a queda do longo e brutal regime de Bashar al-Assad na Síria, as atenções se voltam aos movimentos de atores regionais e diretrizes do novo governo de Damasco. Israel, Iraque e Rússia começaram a agir, enquanto o governo de transição na Síria fala em adotar uma economia descentralizada, de apoio ao livre mercado, tentando tranquilizar a comunidade internacional.
Depois de 11 dias de uma ofensiva surpresa, os rebeldes tomaram o controle de Damasco, as forças do governo se renderam e Assad fugiu para a Rússia. A queda foi resultado direto do enfraquecimento ou afastamento daqueles que forneciam o principal apoio ao regime até hoje: Rússia, Irã e Hezbollah.
Uma semana depois, ainda é incerto como ficará o tabuleiro do Oriente Médio, que vem sendo redesenhado desde os ataques terroristas do Hamas em Israel no dia 7 de outubro do ano passado. No entanto, as ações de determinados atores mostram cautela e dúvida sobre uma estabilidade pós-Assad.
Segundo reportagens de agências de notícias internacionais, a normalidade começou a voltar para as ruas de Damasco após dias de euforia, quando bandeiras verde, preto e branco com três estrelas vermelhas eram balançadas e o canto “levante a cabeça, você é um sírio livre” ecoava nas ruas - canto que remete ao período da Primavera Árabe.
No domingo, dezenas de crianças voltaram às aulas em diversos colégios. Além disso, universidades e comércios voltaram a abrir as portas.
Mohamed al-Bashir assumiu como líder do governo de transição até 1º de março. Engenheiro de formação, Bashir é muito próximo ao líder do HTS (Hayat Tahrir al Sham), o grupo rebelde que tomou o poder.
Bashir nasceu em Idlib e atuou no governo da salvação, que se estabeleceu naquela região em oposição a Assad. Em suas primeiras declarações, o novo líder sírio determinou a soltura de presos do regime e falou sobre uma nova economia de livre mercado - em recado ao Ocidente.
O novo governo prometeu respeitar as organizações internacionais, a ONU e as instituições governamentais. Mas minorias temem a maneira como essa nova liderança islamista governará, como se serão impostas restrições às mulheres, por exemplo. A Constituição do país foi suspensa e o Parlamento fechado por três meses.
O HTS, antiga Frente al Nusra, tem raízes na Al-Qaeda, mas atualmente está desligada do grupo terrorista. Liderou uma ofensiva surpresa em 27 de novembro a partir de Idlib - cidade que, por anos, foi o último reduto dos rebeldes - em coordenação, desde o noroeste de Alepo, com o Exército Nacional Sírio (ENS), apoiado pela Turquia.
O avanço
Em dias, os rebeldes conseguiram tomar a cidade de Homs, cortando a comunicação entre Damasco e as províncias costeiras de Tartús e Latakia, feudo de minoria alauí, de onde vem a família Assad.
Com a queda de Assad, muitos que haviam fugido quando a guerra civil começou, em 2011, começaram a retornar. A Turquia, onde vivem cerca de 4 milhões de sírios, informou neste domingo que 7.600 sírios retornaram.
A Turquia teve papel relevante no avanço rebelde. O país resistia à queda de Assad justamente em razão do fluxo de migrantes em direção ao seu território, mas de seis meses para cá passou a dar certa carta branca ao movimento rebelde.
Agora, a Turquia afirma estar disposta a fornecer ajuda militar ao novo governo sírio. A declaração foi feita pelo ministro da Defesa turco, Yasar Guler, num momento em que o novo governo sinaliza apoio ao objetivo turco de combater os separatistas curdos do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) e as Unidades de Proteção Popular (YPG), presentes em partes da Síria.
A Rússia, no caso o afastamento de Moscou da defesa do governo Assad, também foi fundamental para a queda do regime. O governo de Vladimir Putin está envolvido com a guerra na Ucrânia e não poderia direcionar esforços para a defesa de Assad.
Resta saber se o Kremlin vai manter as duas instalações militares que tem na Síria, fundamentais para projetar sua influência no Oriente Médio e na África. Nos últimos dias, movimentações nas bases russas de Tartús e Latakia, que eram usadas inclusive, para a defesa do ditador sírio nos últimos anos, e a suspensão de envio de grãos a Damasco levantaram suspeitas de uma possível retirada russa.
No domingo, parte do corpo diplomático russo em Damasco foi repatriado. A embaixada russa na Síria continua funcionando.
Dúvidas
Outro grande apoiador de Assad era o Irã, mas até agora é incerto qual será o tipo de relacionamento entre o novo governo sírio e Teerã. A embaixada iraniana na Síria foi atacada pouco depois da chegada dos rebeldes ao poder.
O Irã chegou a enviar alguns soldados para tentar ajudar na resistência do regime Assad frente ao avanço rebelde, mas tem como foco principal a crescente tensão que vive com Israel desde o ano passado.
Militarmente, outro grande apoiador de Assad era a milícia radical xiita Hezbollah. Mas desde 7 de outubro do ano passado tem sofrido muitas baixas, como a morte de seu principal líder, Hassan Nasrallah.
Os Estados Unidos iniciaram contato com o HTS neste fim de semana, mesmo considerando o grupo terrorista. O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, também participou de conversas com altos diplomatas árabes e europeus, assim como com representantes da Turquia. "Concordamos que o processo de transição deve ser liderado e controlado pelos próprios sírios, o que levará a um governo inclusivo e representativo", disse.
Enquanto isso, vizinhos da Síria se preparam para períodos de instabilidade. O Iraque ampliou a segurança em sua fronteira e Israel segue em uma ofensiva há uma semana.
Logo após a queda de Assad, forças israelenses tomaram o controle do Monte Hermon, do lado sírio da fronteira. As forças terrestres israelenses não cruzavam a fronteira desde a guerra de outubro de 1973.
Autoridades israelenses e analistas afirmam ter preocupações de que a queda do regime possa empoderar grupos militantes que queiram realizar ataques contra Israel. Inicialmente, o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu falou em um deslocamento provisório. Neste domingo, no entanto, seu governo aprovou um projeto para duplicar a população na parte das Colinas de Golã que o país ocupa desde 1967 e anexou em 1981.
Tudo indica que a agitação no Oriente Médio não acabou. Desde 7 de outubro do ano passado, diversos cenários foram mudando. A queda de Assad 13 anos após as agitações da Primavera Árabe traz novas dúvidas sobre as relações entre os países da região e como vai se dar a balança de poder.
Uma frase de um artigo do jornal espanhol El País resume bem: em tempos de grande turbulência geopolítica, as mudanças podem ser imprevisíveis e abruptas. Regimes que parecem relativamente estáveis podem se desmoronar em dias. Situações adormecidas durante anos, como a de Nagorno-Karabakh, se destravam em dias.
Continuem acompanhando os desdobramentos no Oriente Médio pela Carta Global
Indicação sobre o tema
Nada do que vimos no dia 8 de dezembro teria acontecido sem uma mudança no equilíbrio das forças internacionais atuando na Síria. A disputa entre potências, o combate ao terrorismo e a eleição de diferentes líderes foram determinantes desde o início da guerra civil síria.
Nesse sentido, deixo aqui um especial infográfico que produzi quando trabalhava no Estadão sobre os 10 anos da guerra civil. Era 2021, muita coisa aconteceu desde então, mas ali é possível ver graficamente algumas dessas mudanças determinantes.