'Crianças estão simplesmente sobrevivendo', diz porta-voz do CICV em Gaza
Em entrevista exclusiva, Sarah Davies conta sobre os desafios de atuar no enclave palestino com a interrupção do cessar-fogo
Por Fernanda Simas
Há um ano e meio, ataques terroristas do Hamas em Israel mudaram o rumo do Oriente Médio. A reação israelense levou a uma guerra em Gaza que dura até hoje. Nas últimas semanas, tem sido discutida a questão da segurança no enclave palestino, mesmo de jornalistas e organizações humanitárias que atuam no local e o futuro da população de Gaza diante da interrupção do cessar-fogo por parte do governo de Binyamin Netanyahu.
O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) tem alertado para as centenas de mortos na escalada da guerra, alguns ficando presos sob os escombros ou deixados para trás sem possibilidade de serem resgatados. Na sexta-feira, o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos afirmou que a guerra em Gaza ameaça a capacidade futura de os palestinos viverem em Gaza.
Em uma entrevista exclusiva, a porta-voz do CICV em Gaza, Sarah Davies, contou à Carta Global sobre o alívio sentido durante o cessar-fogo e as dificuldades que tem enfrentado no enclave palestino. “Ao chegar lá, você fica sobrecarregada, se sente esmagada pela quantidade de destruição, pelos prédios que foram derrubados, pelas pilhas de escombros de meio metro de altura, pelo fato de as pessoas estarem vivendo em abrigos que não são nem tendas”, diz a australiana de 32 anos, que esteve em Gaza durante o cessar-fogo e depois.
”Crianças têm 3 ou 4 anos e estão carregando itens que são quase do tamanho delas e esperando (para receber água) na beira da estrada junto com outras crianças, porque é isso o que elas têm para fazer o dia todo. Elas não têm educação, não há escolas abertas. Elas não têm jogos para brincar, nem livros para ler. Estão simplesmente sobrevivendo a cada dia, e seus pais estão fazendo o melhor possível para ajudá-las a sobreviver”, afirma Sarah.
Leia a entrevista abaixo:
Quais são os principais desafios de atuar em Gaza neste momento?
Há uma infinidade de desafios para as equipes que estão trabalhando em Gaza, incluindo o fato de que hostilidades muito intensas continuam em várias áreas, fazendo com que os civis não saibam para onde ir para ficar em segurança, ou então ficam recebendo ordens de retirada de onde estão. Ou seja, se deslocam muito. É muito difícil descobrir onde estão as maiores concentrações de pessoas para podermos ajudar.
A suspensão da ajuda e da entrada de ajuda humanitária em Gaza também estão criando barreiras para que as pessoas acessem itens essenciais, para que nós tenhamos acesso a suprimentos e possamos distribuí-los de forma segura e eficaz à população civil. Os poços e redes de água e as redes de eletricidade estão danificadas em razão dos ataques e nós não podemos reparar.
Fisicamente é muito difícil circular em Gaza em razão do tamanho da destruição, há escombros nas estradas e alagamentos causados por canos danificados. Existem enormes crateras nas estradas que nossas equipes usavam para se locomover. Portanto, é incrivelmente desafiador para qualquer organização humanitária trabalhar em Gaza hoje. Continuaremos a responder da melhor forma possível, mas infelizmente há desafios crescentes.
Quais mudanças percebeu durante o cessar-fogo?
Durante o cessar-fogo, houve uma pausa nas ordens de retirada da população, então as pessoas conseguiram se acomodar com certo conforto, se podemos chamar assim, pois não precisavam fugir a cada poucos dias e não precisavam garantir que tudo estivesse pronto para ser levado a qualquer momento.
Para organizações humanitárias internacionais, como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, foi uma oportunidade de alcançarmos mais civis que precisavam de ajuda. Foi uma chance para os civis poderem chegar até nós, vindo com segurança ao Hospital de Campanha da Cruz Vermelha, por exemplo, onde tratamos pacientes que estavam precisando de diversos tipos de cuidados, desde casos de gravidez a doenças crônicas, feridos de guerra, pessoas feridas por armas, casos de reabilitação física e cuidados pós-operatórios.
Conseguimos nos concentrar nessas necessidades em vez de atender a um grande número de vítimas emergenciais em razão das explosões ou outros ataques. Foi uma oportunidade para os profissionais de saúde e médicos, não apenas no Hospital de Campanha da Cruz Vermelha, mas em todas as outras instalações médicas e hospitais que estavam funcionando na época, tratarem pacientes que até aquele momento haviam deixado de ser prioridade porque a todo momento alguém precisava de uma cirurgia para ter a vida salva após ser ferido nos ataques. Ou seja, conseguimos alcançar pessoas que estavam inacessíveis durante os ataques.
Outro ponto importante foi que as pessoas puderam ficar no mesmo lugar por um tempo, então conseguimos saber onde mais pessoas estavam, avaliar suas necessidades e responder a elas.
Quando estive em Gaza durante o cessar-fogo, muitas pessoas com quem conversei diziam sentir alívio. Emocional e mentalmente, foi um alívio, um descanso do peso de viver em um conflito com hostilidades ativas, como dizemos, o que fez uma enorme diferença para a população. Só o fato de ter um aspecto da luta diária removido - o fim dos ataques constantes - fez uma grande diferença.
Agora, por outro lado, a retomada das hostilidades foi um grande golpe para os civis, que tinham sentido o que era viver sem o som das explosões, sem ter que se preocupar em ser morto, ferido ou deslocado a todo momento. E, infelizmente, agora voltamos para a situação em que estávamos antes do cessar-fogo, nos 18 meses anteriores.
Diante desse cenário, quais são as principais ações do CICV hoje na região?
Neste momento, mesmo com a retomada das hostilidades, os membros do CICV continuam operando, continuamos no terreno. Ainda temos um hospital de campanha da Cruz Vermelha em funcionamento, que administramos com o apoio de 14 organizações, além da Sociedade Palestina da Cruz Vermelha. Continuamos tratando as pessoas.
Infelizmente, vemos o retorno, e o aumento, do que chamamos de eventos com vítimas em massa, nos quais um grande número de pessoas feridas chega ao mesmo tempo buscando ajuda, vítimas do mesmo ataque, uma mesma explosão. Mas todos os nossos programas no hospital continuam funcionando. Está sendo desafiador em razão da suspensão da entrada de ajuda humanitária, mas estamos muito comprometidos.
Ainda temos programas como cozinhas comunitárias, onde fornecemos refeições para as pessoas em Gaza, ativos. Às vezes, essa refeição, uma vez por dia, é a única que as famílias recebem. A população não consegue encontrar comida em nenhum outro lugar.
Outras organizações de ajuda também estão enfrentando dificuldades. Padarias fecharam porque estão sem os ingredientes necessários, como farinha, ou os itens para a preparação de alimentos. Também administramos espaços como fornos comunitários, onde as pessoas podem levar seus próprios alimentos, como pão ou pizza, para assar. Além disso, estamos trabalhando de forma regular e constante com os prestadores de serviços locais para realizar reparos e manutenções possíveis em itens como poços de água, canos ou redes de eletricidade e geradores.
E, claro, temos um apoio contínuo com equipamentos e materiais para as instalações médicas e hospitais que estão funcionando atualmente em toda a Faixa de Gaza. Isso inclui apoio à saúde mental, bem como programas de reabilitação física, cirurgias, cuidados com ferimentos, contusões e necessidades de atenção primária à saúde. Está sendo desafiador, mas permanecemos dedicados a responder às necessidades dos civis da melhor forma possível.
Antes do início da guerra, como o CICV estava operando em Gaza?
Antes de outubro de 2023, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha já estava presente em Gaza há décadas. Tínhamos uma variedade de programas, incluindo aqueles que visavam fortalecer os serviços essenciais em Gaza. Esses programas envolviam áreas como eletricidade, saúde pública, água, saneamento e instalações de higiene para uso público.
Trabalhávamos com prestadores de serviços locais para aumentar a eficiência, realizar manutenções e reparos necessários de forma que, quando ocorriam pequenas escaladas na tensão, com uma semana ou mais de hostilidades, a infraestrutura essencial de Gaza pudesse suportar o impacto sem colapsar.
Também atuamos em apoio ao treinamento de equipes médicas e chegamos a implementar iniciativas para a construção de paineis solares e infraestrutura de barragens, garantindo maior acesso à água potável para a população. Tentávamos melhorar áreas com alto risco de inundações e reabilitamos um departamento de emergência em um hospital para que fosse melhor equipado para responder aos casos com vítimas em massa.
É importante lembrar que antes de outubro de 2023, Gaza já enfrentava grandes dificuldades. Sua infraestrutura essencial não era forte. O sistema de saúde, as redes de água e eletricidade não eram robustos, e Gaza ainda dependia muito de eletricidade e água provenientes de outras regiões. Além disso, o território ainda dependia fortemente de ajuda humanitária.
Encontrar empregos em Gaza era muito difícil, e crianças e adolescentes sentiam que não havia oportunidades adequadas para eles, pois ainda estavam sob bloqueio. Havia fortes restrições sobre o que podia entrar e quem podia sair da região.
Portanto, esses programas já eram extremamente importantes para Gaza antes de outubro de 2023. Infelizmente, muitos deles agora se tornaram até menos relevantes devido ao alto nível de destruição de infraestrutura em Gaza.
É possível descrever qual cena mais te impactou nesse período?
Estive em Gaza tanto durante as hostilidades quanto durante o cessar-fogo. E acho que é quase impossível descrever uma única cena que tenha me impactado mais, porque tudo o que você vê é devastador. É de partir o coração.
Sou alguém que fala sobre Gaza e tem falado publicamente sobre Gaza durante todo este conflito. Falei sobre isso por meses antes de entrar em Gaza, e, ainda assim, não estava preparada para as cenas de destruição que encontrei ao chegar, nem para a forma como as pessoas foram forçadas a viver por causa desse conflito. Quando entrei, mesmo tendo me preparado, mesmo tendo conversado com membros da equipe, visto nossos vídeos e imagens, não foi a mesma coisa do que ver com meus próprios olhos.
Ao chegar lá, você fica sobrecarregada, se sente esmagada pela quantidade de destruição, pelos prédios que foram derrubados, pelas pilhas de escombros de meio metro de altura, pelo fato de as pessoas estarem vivendo em abrigos que não são nem tendas. São abrigos de plásticos rasgados, cobertores ou folhas secas de palmeiras.
Você vê crianças andando pelas ruas de terra, pelas estradas de areia, carregando galões enormes, pois estão esperando por um caminhão-pipa para tentar conseguir água para seus familiares. Essas crianças têm 3 ou 4 anos, estão carregando itens que são quase do tamanho delas e esperando na beira da estrada junto com outras crianças, porque é isso o que elas têm para fazer o dia todo. Elas não têm educação, não há escolas abertas. Elas não têm jogos para brincar, nem livros para ler. Estão simplesmente sobrevivendo a cada dia, e seus pais estão fazendo o melhor possível para ajudá-las a sobreviver.
É uma catástrofe humanitária, algo muito fácil de esquecer em uma guerra que já dura 18 meses. Mas cada pessoa, cada civil em Gaza que foi afetado nesse período, tinha uma vida antes disso. Eles tinham sonhos, trabalho, escola, esperanças para suas famílias, coisas que gostavam de fazer. E tudo isso foi tirado deles. Acredito que isso tenha sido o que mais me impactou.
O que é necessário para o CICV continuar seu trabalho na região?
O CICV continua comprometido em responder às necessidades dos civis da melhor forma possível, mas a situação é desafiadora, especialmente em termos de segurança, com as hostilidades em andamento. Está sendo difícil para os civis acessarem nossos programas e para nós acessarmos os civis. Está sendo muito, muito desafiador.
Precisamos que a ajuda entre em Gaza imediatamente, sem impedimentos. Precisamos garantir um fluxo contínuo de itens que possam ser enviados a Gaza e distribuídos de maneira segura e eficaz à população civil, que, neste momento, está vivendo sem nada entrando há um mês.
Continuaremos nossas discussões bilaterais e confidenciais com ambas as partes deste conflito sobre o que precisa ser feito. Mas, infelizmente, isso depende de um acordo entre as partes. Soluções diplomáticas precisam ser encontradas. Há um limite de até onde as organizações humanitárias podem ir no terreno para responder, se não houver vontade política ou vontade diplomática para mudar a situação, não conseguiremos ultrapassar essa limitação.
Agradecimento
No dia 9 de abril, a Carta Global completou um ano de existência. Um projeto pensado por muitos meses ganhou vida quando a guerra em Gaza completava seis meses. Ao longo desse período, muitas pessoas novas chegaram para acompanhar o meu trabalho, por isso quero aproveitar esse espaço para agradecer a confiança de cada uma/um, em especial aos que contribuem de alguma forma.
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