Entrevista: Papa Francisco deixou sua marca na questão climática e na diplomacia
Frei Betto lembra encíclica em defesa dos direitos da natureza e forte atuação do pontifícia ao tentar resolver conflitos, como guerras em Gaza e na Ucrânia
Por Fernanda Simas
O Papa Francisco morreu. Depois de 12 anos de pontificado, um forte papel na diplomacia mundial, na defesa dos migrantes e na questão ambiental, o Papa reformador da Igreja Católico morreu nesta segunda-feira pela manhã, aos 88 anos, em razão de um AVC e insuficiência cardíaca.
Até seus rituais pós-morte surpreenderam. Um caixão simples, em sua lápide apenas “Franciscus”, e seu enterro deve ser algo simples, na Basílica de Santa Maria Maggiore, e não no Vaticano. Francisco deixa um legado de lutas e sua sucessão preocupa aqueles que comemoraram o caminho progressista da Igreja ao longo desses anos.
”Ele é o primeiro papa a fazer uma encíclica em defesa dos direitos da natureza”, afirma Frei Betto, frade dominicano. “Foi o papa que se tornou uma figura mais proeminente na política internacional, pela maneira como sempre se comportou diante dos conflitos.”
Para Betto, o conclave deverá ser atribulado e podem haver surpresas. Ainda assim, seu palpite é de que um dos cardeais italianos nomeados por Francisco se torne o novo pontífice.
Leia a entrevista:
Quais são os principais legados do Papa Francisco?
Há muitos grandes legados. Ele é o primeiro papa a fazer uma encíclica em defesa dos direitos da natureza, que é a ‘Laudato si’, ‘Louvado sejas’, denunciando que a crise ambiental não tem nada a ver com o desequilíbrio climático. Tem a ver, sim, com a exploração predatória da natureza por grandes grupos econômicos. Grupos que estão afetando o equilíbrio em função dos seus lucros, o que traz consequências, sobretudo na vida dos mais pobres. São eles os mais afetados pelo desequilíbrio ambiental. Acho que essa é uma marca muito coerente com o nome que ele escolheu, Francisco. São Francisco não só era o defensor dos pobres, mas também dos direitos da natureza.
Por outro lado, foi o papa que se tornou uma figura mais proeminente na política internacional, pelo equilíbrio, pela maneira como ele sempre se comportou diante dos conflitos e tomando posição, não como uma figura neutra, supostamente neutra. Ele assumiu a denúncia do genocídio sionista do Estado de Israel sobre o povo palestino e, ao mesmo tempo, tentou levar a efeito um diálogo de paz entre a Ucrânia e a Rússia. Não conseguiu. Não foi ouvido, mas se empenhou muito nesse sentido.
Tem, também, a defesa dos migrantes, dizendo que os migrantes que chegavam à Europa e eram rechaçados por governos e povos, eram vítimas de uma exploração secular dos países que colonizaram a África, o Oriente Médio e a Ásia. Colonização que causou pobreza, miséria e, ao mesmo tempo, provocou guerras e conflitos. Eles (migrantes) não chegavam aos países metropolitanos em busca de privilégios, conforto, chegavam em busca de sobrevivência. Eles preferiam viver nos seus países de origem, mas ali o que eles tinham como futuro imediato era a morte.
Esse trabalho deve ter continuidade com o próximo papa?
É imprevisível o que vai acontecer no conclave. De fato, embora Francisco tenha nomeado 80% dos atuais cardeais eleitores, isso não significa que todos pensem como ele. Porque quando o Papa nomeia um cardeal, ele leva em conta também a vontade dos bispos locais, ele não pode nomear um cardeal que vai ser rejeitado pelos bispos locais. Então ele procura uma figura consensual e, em muitos casos, esse consensual era mais gente identificada com a linha de Bento XVI e João Paulo II do que a dele, Francisco.
Não podemos esquecer que a soma desses dois pontificados conservadores, João Paulo II e Bento XVI, são 34 anos, período em que a Igreja ficou profundamente marcada por esse conservadorismo. Tanto que Francisco governou seu período dentro de uma contradição, porque de um lado ele era aquele que buscava o consenso, mas de outro era aquele que não era aceito por muitos bispos e cardeais que vinham de uma tradição conservadora. A ponto de cardeais dos Estados Unidos o acusarem de comunista.
Eu, pessoalmente, digo que a minha previsão é que haverá muito empenho para que se faça papa, um cardeal africano. Não porque a África não tenha tido papa. Teve, mas isso faz muitos séculos, foi na Idade Média, e hoje o catolicismo mais cresce no território africano. Porém, os cardeais africanos são tendencialmente conservadores, então não acredito que eles venham a ser contemplados com o papado.
A minha previsão é que será de novo um italiano. O sonho dos italianos é recuperar a hegemonia do papado e Francisco nomeou alguns italianos que são muito esclarecidos, muito bem preparados, e acredito que um dos cinco nomeados por ele será o escolhido, mas em minha previsão, pode ser que eu me equivoque. Acho que teremos um conclave atribulado.
O conclave deve durar muito tempo?
O que é durar muito? Hoje, um conclave que passa de uma semana é muito, dentro da psicologia da Igreja, dos tempos que vivemos. Já houve conclave de quatro anos, o povo foi lá destelhar o local do conclave no inverno para ver se os cardeais apressavam a eleição do Papa. Mas pode haver surpresa.
Vivemos uma forte polarização e vemos o retorno de discursos que pedem ditaduras, usando até a religião em suas justificativas. Como a Igreja tem feito o trabalho de base para que não seja usada como manipulação de poder, como ocorre em alguns lugares?
Depende do lugar, porque tem muito bispo que está de acordo com essa sua manipulação, que é conservador e tem poucos, lamentavelmente hoje poucos, progressistas. A maioria é de moderados a conservadores. Então, vejo que não há essa preocupação. A Igreja está perdendo espaço para os evangélicos justamente por essa razão, por esse clericalismo exacerbado que impede os leigos de ter autonomia dentro da Igreja, as mulheres, então, nem se fala. E com isso a gente está ficando para trás. Isso foi muito reforçado pela pastoral do João Paulo II e do Bento 16, que tinham horror às Comunidades Eclesiais de Base e à Teologia da Libertação.
Betto, para finalizar, o que pode dizer de seu contato pessoal com o Papa Francisco?
Eu fiquei extremamente feliz com a eleição do Francisco, depois de passar 34 anos de sofrimento, vendo a Igreja retroceder, vendo as comunidades de base serem desmanteladas, vendo a Teologia da Libertação sendo injustamente censurada. O Cardeal Bergoglio eu não conhecia muito, mas quando vi a proximidade dele com Dom Cláudio Hummes, com quem trabalhei muitos anos na Pastoral Operária do ABC, fiquei muito feliz. Vi Cláudio Hummes, como franciscano, sugerir ao Bergoglio que adotasse o nome de Francisco, foi o primeiro Papa a adotar esse nome.
Ali ficou sinalizado para mim qual era a linha pastoral dele (Papa), a opção pelos pobres, pela defesa da natureza, etc.
E tive o privilégio de encontrá-lo duas vezes e ter boas conversas muito pessoais com ele, tanto em 2014 quanto em agosto de 2023. Ele me tratava com muito carinho. Eu sou um ardoroso defensor do Francisco e, ao mesmo tempo, agradecido a Deus por termos tido esse Papa.
Indicação sobre o tema
“Com a morte do Papa, o cardeal Lawrence reúne um grupo de sacerdotes para eleger seu sucessor. Cercado por líderes do mundo todo nos corredores do Vaticano, ele descobre uma trilha de segredos profundos que podem abalar a própria fundação da Igreja”. Esta é a sinopse do filme “Conclave” que concorreu ao Oscar em diferentes categorias, e venceu em Melhor Roteiro Adaptado. Já disponível em algumas plataformas de streaming, deixo aqui como dica para entender um pouco sobre o processo de escolha do papa.