Cessar-fogo em Gaza: o que esperar deste acordo
Três reféns israelenses foram entregues pelo Hamas e centenas de caminhões de ajuda humanitária começaram a entrar no enclave palestino
Por Fernanda Simas
Após 15 meses de guerra, teve início na manhã deste domingo o cessar-fogo entre o Hamas e Israel. Três reféns israelenses que estavam sob poder de terroristas foram entregues e retornaram às suas casas. Em troca, 90 prisioneiros palestinos foram libertados e enviados para a Cisjordânia, e caminhões com ajuda humanitária finalmente começaram a entrar em Gaza.
As cenas de palestinos comemorando o início do cessar-fogo e das reféns israelenses retornando tomaram conta dos noticiários. Tudo isso um dia antes da posse de Donald Trump nos Estados Unidos.
Olhando o texto do acordo que começou a ser colocado em prática, nota-se que ele é praticamente o mesmo daquele apresentado em maio do ano passado. Mas o que mudou?
Acompanhando os desdobramentos da guerra iniciada em 7 de outubro de 2023, quando terroristas do Hamas realizaram os ataques em Israel e o governo de Binyamin Netanyahu começou uma mortífera reação, e conversando com analistas, três fatores parecem ter sido determinantes para que esse cessar-fogo ocorresse agora.
A chegada de Trump ao poder tem papel fundamental, afinal desde a campanha ele havia sinalizado que o Oriente Médio viraria um inferno caso o Hamas não devolvesse os reféns e a guerra continuasse. Ele chegou a enviar o empresário Steve Witkoff para as negociações que ocorriam entre os dois lados com a participação de Egito, Catar e EUA (equipe de Joe Biden).
Witkoff trabalhou ao lado de Brett McGurk, negociador de longa data de Biden que estava em Doha, no Catar. Segundo apurações da mídia americana, McGurk liderava os detalhes do cessar-fogo enquanto Witkoff fazia pressão para que ele saísse antes da posse de Trump. O empresário chegou a se reunir com o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, num sábado pela manhã, em meio ao shabat - dia de descanso semanal dos judeus, dia sagrado dedicado a orações.
Enfraquecimentos das partes
Outro ponto que viabilizou este acordo neste momento é o enfraquecimento do Hamas ao longo dos 15 meses de guerra. Diversos de seus combatentes e líderes foram mortos e, além disso, o grupo perdeu o apoio crucial de Irã e Hezbollah - enfraquecidos pelo confronto direto com Israel.
O principal ponto de virada foi o acordo de cessar-fogo entre Israel e a milícia radical xiita libanesa Hezbollah costurado pela administração Biden. Isso porque a trégua foi definida sem colocar a questão palestina como condicionante - o que enfraquece e isola substancialmente o Hamas.
Por fim, é preciso considerar a perda de apoio interno de Netanyahu. Nos últimos meses, o primeiro-ministro israelense viu sua popularidade diminuir mesmo entre sua base aliada. Segundo pesquisa do Canal 12, em novembro, pela primeira vez desde o início da guerra, 56% da base de eleitores eram a favor de um acordo, mesmo que isso significasse o fim da guerra.
O que diz o acordo?
O plano prevê a entrega de todos os 94 reféns que ainda estão sob o poder do Hamas, estejam vivos ou mortos, em troca da libertação de cerca de 1700 palestinos presos; o envio de ajuda humanitária para a Faixa de Gaza, a retirada total das tropas israelenses do enclave. Isso tudo em três fases:
A primeira com duração de seis semanas, quando 33 reféns israelenses serão liberados em troca dos prisioneiros palestinos. E a ajuda humanitária começa a entrar na Faixa de Gaza - serão centenas de caminhões por dia. Ao longo desta etapa, está prevista a discussão sobre os detalhes do fim da guerra.
No domingo, Romi Gonen, de 24 anos, Emily Damari, de 28, e Doron Steinbrecher, de 31, foram entregues pelo Hamas e se reencontraram com suas famílias em Israel. Na Faixa de Gaza, mais de 300 caminhões de ajuda humanitária foram enviados pelo Egito.
A próxima entrega de reféns está prevista para o sábado, dia 25.
A segunda fase do acordo está prevista para iniciar no décimo sexto dia desde o início do cessar-fogo e prevê a entrega dos outros reféns israelenses em troca da soltura do restante dos prisioneiros palestinos. Nesta etapa, as forças israelenses deverão deixar Gaza.
A terceira e última fase deve começar juntamente com a segunda e terá a devolução dos reféns israelenses mortos e negociações sobre a reconstrução de Gaza.
Mas mais importante do que olhar para o que o texto diz, é olhar para o que ele não determina: as garantias para que todas as fases sejam cumpridas e o que ocorre com Gaza após esse período. Será de fato o fim da guerra?
Importante trazer aqui alguns olhares sobre o contexto dos atores envolvidos nesse conflito.
O partido Poder Judaico do ministro de Segurança israelense, Itamar Ben Gvir, abandonou a coalizão de Netanyahu após a aprovação do cessar-fogo. Ou seja, três ministros deixaram o governo, que ficou com maioria estreita no Parlamento.
Se o ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, deixar o governo, aí sim a coalizão pode ruir. E ele disse que sairá caso a segunda fase do cessar-fogo comece a ser implementada pois sua exigência é que a guerra volte. Dessa forma, ainda é incerto se o acordo será cumprido em sua totalidade.
Netanyahu já está de olho em possíveis novas eleições e tentar obter o máximo de ganho com a volta dos reféns. Além disso, ele deve conseguir negociar alguma moeda de troca com Trump após ter aceitado este cessar-fogo - como, por exemplo, a garantia da retomada das negociações entre Israel e Arábia Saudita.
Futuro do Hamas
Do outro lado dessa guerra, estão o Hamas e Gaza. Não há um plano para a reconstrução do enclave que teve entre 80% e 90% de seus edifícios destruídos e não há um plano sobre a governança dessa região.
Imagens do início do cessar-fogo mostraram diversos combatentes do Hamas nas ruas de Gaza, o que foi interpretado por algumas análises como uma demonstração do grupo de que não foi derrotado. Fato é que novos integrantes serão recrutados para as fileiras do Hamas.
Desde o início da ofensiva israelense, Netanyahu falava que seu principal objetivo era aniquilar o Hamas, mas muitos alertavam que isso era praticamente impossível. Agora, se as tropas israelenses deixarem o enclave sem um plano de governança para a região, fica ainda mais difícil falar em fim do grupo.
Outro ponto de dúvida é como ficará a situação da Cisjordânia e da Autoridade Palestina, que governa a região. O presidente da AP, Mahmoud Abbas, afirmou, dias após o anúncio do cessar-fogo, que a entidade estava pronta para assumir toda a responsabilidade em Gaza.
A AP chegou a ajudar na contenção de uma explosão social na Cisjordânia ao longo da guerra, mas agora como ficará a questão dos assentamentos judaicos, por exemplo? Muitos temem que Netanyahu volte a expandir sua política de ocupação com o aval de Trump, e isso leve a novos confrontos.
Todos esses desdobramentos ocorrerão sob a presidência de Donald Trump, que toma posse nesta segunda-feira. Resta acompanhar como sua administração vai lidar com as pressões no Oriente Médio. Continuem acompanhando os próximos eventos pela Carta Global.
Indicação sobre o tema
Após o anúncio do cessar-fogo, o podcast Do Lado Esquerdo do Muro fez um episódio resumindo as negociações e trazendo um apanhado da situação política em Israel. Ao longo desses meses de guerra, a política interna israelense passou por muitas reviravoltas. Deixo aqui a dica do episódio #284: Cessar-fogo entre Israel e Hamas.
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