Semana de mudanças: o que esperar das guerras em Gaza e na Ucrânia
Israel rompe cessar-fogo e retoma ataques contra o Hamas; Putin e Trump discutem fim do conflito ucraniano, sem participação de Kiev ou da Europa
Por Fernanda Simas
Nesta semana, duas guerras que o presidente Donald Trump prometeu encerrar quando assumiu a presidência dos Estados Unidos estão tomando rumos incertos, que podem fortalecer a tese de diversos analistas internacionais sobre uma nova ordem mundial se formando.
Na Faixa de Gaza, Israel rompeu o cessar-fogo que vigorava desde 19 de janeiro e voltou a bombardear o enclave palestino. Na Ucrânia, uma trégua parcial de 30 dias deve começar após negociações entre Trump e Vladimir Putin, ignorando as demandas ucranianas e europeias.
A guerra em Gaza
Na madrugada de segunda para terça-feira, o governo de Binyamin Netanyahu afirmou que estava retomando as ações militares contra o Hamas após o grupo terrorista ter recusado diversas propostas israelenses e americanas para estender a fase um da trégua e continuar com a troca de reféns. Mas fato é que existem muitas motivações por trás da justificativa oficial.
Analistas internacionais vinham afirmando que a implementação da segunda fase do acordo seria muito difícil porque significava um cessar-fogo permanente, a retirada israelense de Gaza, a reabertura das passagens da fronteira para a entrada de ajuda e a liberação dos últimos reféns. Na prática, seria o fim da guerra, com garantias para a reconstrução de Gaza e a discussão sobre o futuro do enclave.
Mas o fim da guerra não é de interesse de Netanyahu.
O cessar-fogo permanente poderia levar à saída de integrantes da extrema direita da base do governo israelense, o que poderia inviabilizar a permanência de Netanyahu no poder. Além disso, com o fim do conflito deve ser aprofundada a investigação sobre as responsabilidades do governo nas falhas de segurança que “permitiram” o ataque terrorista do Hamas de 7 de outubro de 2023.
Na semana passada, começaram a ser publicados os relatórios sobre essas falhas. Os documentos apontam erros na transmissão de informações de inteligência que poderiam ter alertado as autoridades sobre a magnitude do ataque sem precedentes, mas também sinalizam falhas do Executivo e, indiretamente, de Netanyahu, pela “política de calma que permitiu ao Hamas acumular um impressionante arsenal militar”.
Como consequência, Netanyahu afirmou que pediria a destituição do diretor do Shin Bet, a agência de segurança interna de Israel. A motivação: o primeiro-ministro acusou Ronen Bar de estar por trás de uma campanha de divulgação e vazamentos na mídia para desincentivar decisões do governo sobre os rumos do Shin Bet.
A tensão entre Netanyahu e Bar, no entanto, começou antes mesmo do ataque porque os dois discordavam sobre o projeto de reforma da Justiça.
Internamente, a situação do primeiro-ministro era de perda de apoio em sua coalizão. Integrantes importantes de sua base estão enfrentando acusações de conexões suspeitas com o Catar e Netanyahu precisa que o orçamento seja aprovado para se manter no poder.
Parte de sua coalizão estava ameaçando não apoiá-lo, mas, agora, passa a ser atendida com a retomada da guerra. Com a volta da guerra, o deputado de extrema direita Itamar Ben Gvir, por exemplo, retornou ao governo como ministro da Segurança Nacional.
Reféns em Gaza
O Hamas declarou que Israel interrompeu de forma unilateral o cessar-fogo e a retomada da guerra expôs os reféns que ainda estão sob seu poder a um “destino desconhecido”. Ainda estão em Gaza 59 reféns dos que foram levados em 7 de outubro, sendo que 34 foram declarados mortos pelo exército israelense.
O governo Netanyahu nunca priorizou a recuperação dos reféns. Agora, as famílias dos que seguem sob poder do Hamas voltam a protestar nas ruas de Tel-Aviv e Jerusalém, afirmando que foram “abandonadas” pelo governo.
O Hamas alega que sua intenção era ir direto para a fase dois do acordo, que deveria ter sido iniciada em fevereiro. Fato é que se o grupo entregasse os reféns numa extensão da trégua da primeira fase do acordo, ficaria sem poder de barganha, explicam os analistas, para negociar o fim dos ataques israelenses e o futuro de Gaza.
Os EUA confirmaram que foram informados antes da retomada dos bombardeios israelenses e deram apoio incondicional a Netanyahu.
Até o momento, 970 pessoas morreram em Gaza nas 48 horas dos recentes bombardeios israelenses. Agora, segundo o ministério da Saúde do enclave, desde o início da guerra, 49.547 palestinos morreram.
Futuro das negociações
Netanyahu afirmou que os bombardeios foram “apenas o começo” e que a pressão militar será o caminho para a recuperação dos reféns. Afirmou, ainda, que as negociações futuras vão ocorrer “sob fogo”.
Talher al Nunu, um dirigente do Hamas, afirmou nesta quarta-feira que o grupo “não fechou a porta para as negociações”, mas insistiu que não há necessidade de novos acordos. “Já existe um acordo, assinado por todas as partes”.
Além disso, o grupo pediu aos "países amigos" que "pressionem" os EUA para que interrompam os bombardeios.
Vários países árabes e europeus, assim como Rússia, Turquia e Irã, condenaram os novos bombardeios. O Egito denunciou uma tática israelense para pressionar os palestinos a abandonar Gaza, enquanto o Irã condenou um "genocídio". "O povo de Gaza vive mais uma vez com um medo abjeto", lamentou o chefe do Escritório de Assuntos Humanitários da ONU, Tom Fletcher.
A guerra na Ucrânia
A guerra na Ucrânia foi tema de uma longa conversa telefônica entre Trump e Putin na terça-feira. Novamente, os termos para se chegar a uma paz não tiveram a presença de autoridades ucranianas ou europeias, o que indica que um acordo definitivo está distante.
A Rússia concordou com um cessar-fogo parcial de 30 dias, nos quais se comprometeu a não atacar a infraestrutura energética ucraniana. Enquanto isso, as conversas para algo duradouro continuariam.
Putin também concordou em trocar, nesta quarta-feira, 175 prisioneiros de guerra com a Ucrânia. No entanto, o presidente russo ainda não aderiu ao plano de cessar-fogo de 30 dias que os ucranianos haviam aceitaram sob pressão de Trump.
Para esse cessar-fogo mais amplo, o russo impôs suas condições, entre elas o fim do "rearme" da Ucrânia, segundo o Kremlin. Putin também pediu a Trump que cesse a ajuda ocidental a Kiev.
Na semana passada, líderes da União Europeia se reuniram e decidiram dobrar a ajuda militar à Ucrânia em 2025. Por isso, a análise geral é de que será muito difícil atender aos “pedidos” russos. Fato é que países europeus acreditam que ceder a essas condições agora impedirá uma negociação em pé de igualdade mais para frente.
Segundo alguns analistas, a Rússia está tentando garantir um cinturão de segurança na fronteira com os países da Otan. Para isso, manter partes conquistadas da Ucrânia é importante para o governo russo.
A visão ucraniana
O presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, afirmou que as condições estabelecidas por Putin têm o objetivo de "enfraquecer" a Ucrânia e demonstram que ele não está pronto "para pôr fim" à guerra. "Todo o seu jogo é nos enfraquecer o máximo possível", declarou Zelenski em uma coletiva online, após a conversa telefônica entre Putin e Trump.
Nesta quarta, Zelenski afirmou que os russos atacaram instalações energéticas, descumprindo o estabelecido. O presidente ucraniano deve conversar com Trump e afirmou que exigirá que os territórios ocupados pelo Exército russo desde a invasão, em fevereiro de 2022, sejam desocupados.
A Rússia tomou o controle da Crimeia, ainda em 2014, mas nesta invasão ocupou Luhansk e Donetsk, além das regiões de Kherson e Zaporizhya. Trump, numa fala que preocupa a Europa e Kiev, afirmou que está disposto a discutir um “partilhamento” entre Ucrânia e Rússia.
Os americanos não querem discutir o que já foi tomado, mas sim uma forma de evitar que haja mais avanços. A atual gestão americana não acredita em uma reversão como ocorria com a gestão Joe Biden.
Uma opção que começou a ser ventilada é reconhecer a Ucrânia como um Estado de país neutro, ou seja, com fronteiras delimitadas para o exército ucraniano e orçamento limitado para a área militar.
Moscou quer ter a garantia de que a Ucrânia não entrará na Otan e que os avanços territoriais feitos serão respeitados.
Putin havia pedido, ainda, que os soldados ucranianos que lutam no oblast (região administrativa) russo de Kursk depusessem as armas, depois que Trump pediu que ele "poupasse as vidas" dos militares ucranianos na linha de frente.
"Se eles entregarem as armas e se renderem, terão a garantia de vida e tratamento digno, de acordo com as normas do direito internacional e as leis da Federação Russa", disse Putin.
Novas conversas
Ainda é muito incerto o destino dessas negociações. Até agora, está estabelecido que as conversas vão continuar domingo na Arábia Saudita - que, aliás, tem se tornado um player importante do cenário internacional, mas isso é assunto para uma nova Carta Global.
Indicação sobre o tema
Deixo aqui para acompanhar esta edição o episódio 816 do podcast Petit Journal, que traz exatamente discussões sobre o futuro de Gaza e da Ucrânia. Além disso, outro tema abordado, que tem relação com a situação ucraniana, é o rearmamento da Europa.
Mais pelo mundo:
Suprema Corte repreende Trump em meio a batalhas jurídicas
Numa rara declaração pública, o presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos, John Roberts, repreendeu o presidente Donald Trump por propor a destituição de um juiz que foi contra a vontade da administração federal com relação à expulsão de imigrantes. "Está estabelecido há mais de dois séculos que a destituição não é uma resposta adequada a uma discordância sobre uma decisão judicial", disse Roberts em um comunicado.
No sábado, o juiz James Boasberg ordenou que a administração Trump suspendesse por 14 dias a expulsão de imigrantes com base na Lei de Inimigos Estrangeiros, de 1798, ativada pelo presidente americano para expulsar venezuelanos supostamente pertencentes à gangue Tren de Aragua. Até este momento, a legislação havia sido usada apenas três vezes: durante a Guerra de 1812, na Primeira Guerra Mundial e na Segunda Guerra Mundial.
Boasberg pediu concretamente a suspensão do envio dos imigrantes para El Salvador e que fosse preparada uma operação de expulsão para os 238 venezuelanos. Ignorando a medida, o governo seguiu adiante com as deportações, alegando que os imigrantes já tinham deixado os EUA quando o juiz emitiu a ordem com a proibição por escrito e que o magistrado não tem jurisdição, uma vez que os aviões estavam fora do espaço aéreo americano.
Na terça-feira, o juiz Boasberg pediu uma resposta ao governo. Trump, então, o chamou de “lunático radical de esquerda”. Essa não é a primeira vez que Trump ataca o Poder Judiciário por contrariá-lo, mas agora ele deu um passo à frente, ao pedir diretamente a destituição de Boasberg.
As disputas entre Trump e o poder judicial não devem parar tão cedo. Ainda na terça, um tribunal federal de Maryland determinou que a decisão da administração de abolir a agência de desenvolvimento USAID é, “provavelmente”, inconstitucional.
A USAID administrava um orçamento anual de US$ 42,8 bilhões, o equivalente a 42% da ajuda humanitária desembolsada no mundo. Mas, Trump prometeu durante a campanha realizar um grande corte de gastos e designou tal tarefa a Elon Musk.
Na noite de terça, outra ordem executiva de Trump foi bloqueada juridicamente. A proibição de pessoas transgênero de se alistarem ao serviço militar.
Segundo a juíza Ana Reyes, de Washington, a medida fere os direitos constitucionais. Ela deu um prazo de três dias para a administração Trump se manifestar.
Alemanha aprova mais gastos militares
Em mais um movimento de reação ao novo governo de Donald Trump nos Estados Unidos e pensando em qual pode ser o futuro da guerra na Ucrânia, países da Europa passaram a discutir a ampliação de seus gastos com Defesa. Na terça-feira, a Câmara Baixa do Parlamento alemão (equivalente a uma Câmara dos Deputados) adotou um histórico plano de investimento que permitirá aumentar o gasto para um trilhão de euros, com a intenção de modernizar o país e enfrentar as mudanças geopolíticas.
Na sexta-feira, o texto deverá ser ratificado pelo Bundesrat, a câmara que representa as regiões da Alemanha. O voto é histórico em um país que durante décadas defendeu um controle orçamentário estrito - o que também era possível em razão da garantida ajuda dos EUA na área militar.
O futuro chanceler alemão, Friedrich Merz, se referiu ao plano como um "primeiro grande passo para uma nova comunidade europeia de defesa" que inclua "países que não são membros da União Europeia", como o Reino Unido e a Noruega.
O aumento de gastos na área militar vem sendo tratado por outros países europeus, como a França. Recentemente o presidente Emmanuel Macron falou que a Europa não podia mais depender dos EUA e defendeu, inclusive, o compartilhamento de armas nucleares entre integrantes da UE.
Comunidade armênia de olho em possível acordo de paz com Azerbaijão
O Azerbaijão e a Armênia anunciaram, na semana passada, o fim das negociações para um acordo de paz que pode ser assinado em breve e encerraria décadas de conflito entre os dois países do Cáucaso.
O primeiro-ministro armênio, Nikol Pashinyan, muito criticado internamente pelas posturas adotadas nos últimos anos com relação ao conflito, comemorou o que chamou de "evento importante" e disse que seu país está pronto "para iniciar discussões sobre o local e a data da assinatura".
Os dois países tiveram conflitos recentes envolvendo a região de Nagorno-Karabakh - enclave armênio no Azerbaijão -, que as forças azerbaijanas tomaram inteiramente em setembro de 2023, expulsando os armênios do local em um processo de limpeza étnica criticado, mas não interrompido pela comunidade internacional.
"É hora de se comprometer com a paz, assinar e ratificar o tratado e inaugurar uma nova era de prosperidade para os povos do sul do Cáucaso", disse o secretário de Estado americano, Marco Rubio, em um comunicado.
A diáspora armênia acompanha de perto as negociações e aguarda para entender se o plano será assinado. Recentemente o empresário armênio Ruben Vardanyan, preso em Nagorno-Karabakh em 2023, encerrou um período de greve de fome após chamar a atenção para injustiças cometidas em seu julgamento em Baku. (Deixo aqui um link para seu perfil publicado por mim após uma conversa com ele em 2022). Sigam acompanhando pela Carta Global.